Se o País está a falir, eu também falo

Pasmo de ver a desilusão dos meus compatriotas com o regime. O 25 de Abril não se fez para equilibrar as contas públicas ou combater o desemprego. Esses estimáveis objectivos não constavam do programa revolucionário. O essencial da data, para além da descolonização, foi garantir a liberdade de falar. E assim aconteceu.
Os Portugueses falam hoje pelos cotovelos, falam, falam, desunham-se a falar, embora poucos digam coisa de préstimo. Há mais telemóveis do que pessoas (bebés e surdos incluídos). Parece que os números apontam para dois aparelhos por cabeça; ou, com mais verdade anatómica, um por cada orelha. Certo que para este afã elocutório contribuíram menos os revolucionários do que os pacotes promocionais da TMN, Vodafone e Optimus. Foi o serviço de roaming que acabou de vez com o "orgulhosamente sós", uma população cinzenta a falar para dentro — e nos fez de golpe um povo cosmopolita e moderno à taxa de 30 cêntimos por minuto.



Com o avanço da tecnologia, podemos mesmo falar sozinhos sem risco de exame psiquiátrico. Espaventou-se assim uma nação de tagarelas. Falamos em casa, nos passeios, nas esquinas, no trabalho, ao volante, na praia, no campo, nas filas, nos restaurantes, nas casas de banho. É a diversidade de toques polifónicos que assegura o pluralismo nacional.
A posição de braço alçado a segurar o telemóvel na orelhinha é-nos natural e tão entranhada que, sem receio de ferir a ciência biológica, podemos crismar o fenómeno de mutação. Algumas pessoas experimentam já dificuldades em baixar o braço e mantê-lo alinhado com o corpo.
Em certo anúncio televisivo, as próprias ovelhas falam. Nesse episódio tocante de desenho bíblico e dimensão democrática, percebemos que — apesar de tudo — Abril cumpriu-se.

2 comentários:

  1. Meu Caro Bruno,
    em matéria telemovelesca, quase telenovelesca, de resto, sou um resistente. Dos últimos moicanos, mesmo. E agora percebo a razão, depois do Teu postal fiquei a matutar no quão profético se revelou o título de Laclos «As Ligações Perigosas».

    Abraço

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  2. Está lá? Este postal está lá!

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