Jacques Heers, um mestre da Idade Média

No início deste ano, partiu um dos mais brilhantes medievalistas franceses e europeus. Autor de uma quantidade de obras verdadeiramente impressionante, investigador incansável e historiador livre, Jacques Heers (6/7/1924 – 10/1/2013) foi professor em várias universidades e director de Estudos Medievais na Sorbonne. Os seus principais trabalhos abalaram ideias preconcebidas e revelaram uma realidade muito diferente da que ainda hoje é comummente aceite. Regresso a um mestre.

Foi ainda na adolescência, quando devorava aquelas colecções de livros encadernados do Círculo de Leitores que sintetizavam a História da Europa e do mundo, que tive o meu primeiro encontro com Jacques Heers. Ao ler o segundo volume da “História Universal”, dedicado ao Mundo Medieval, publicado em Portugal em 1977, descobri uma Idade Média bastante diferente da que era ensinada na escola e daquela com que me maravilhava nos romances de cavalaria. Foi a chegada a um novo mundo, que me faria desconfiar para sempre da conhecida classificação “Idade das Trevas” e aguçar a minha curiosidade por um período fascinante. Ao longo do meu curso de História e da posterior pós-graduação em Estudos Medievais recorri a Heers por várias vezes. Foi um historiador que muito me marcou, não apenas pelo período apaixonante que tratou, mas também pelo seu estilo independente e pelas suas conclusões de grande mérito para a investigação séria.

Uma carreira brilhante
Formado na Sorbonne, Jacques Heers torna-se professor e, em 1951, investigador do conceituado CNRS. Por indicação de Fernand Braudel, é enviado para Itália para desenvolver a sua tese de doutoramento sobre Génova no século XV, que defende na Sorbonne em 1958. Torna-se assistente de Georges Duby na Faculdade de Letras de Aix-en-Provence e depois é professor em várias universidades, como Argel, Caen, Roeun, Nanterre e na Sorbonne, onde é director de Estudos Medievais.
Foi bastante influenciado por Braudel que o “marcou, apesar de nem sempre subscrever os seus trabalhos”, Yves Renouard, grande especialista na História de Itália, e Duby, que considerou ter tido “um influência inegável” nos seus trabalhos e que sempre o tratou bem, apesar de ambos não partilharem as mesmas opções políticas.

Uma impostura
Publicado em Portugal em 1994, “A Idade Média, um Impostura” é um livro provocador que desfaz os principais mitos normalmente associados a este período histórico. Na Introdução, afirma: “Não raras vezes, as nossas sociedades intelectuais revelam-se abertamente racistas. Não no sentido em que o entendemos habitualmente, quer dizer, condenações ou desprezo pelas civilizações, religiões ou costumes diferentes dos nossos, mas por espantosa propensão para ajuizar mal o seu passado”. É esse mau juízo da Idade Média que Heers rebate nesta obra. Para ele, a Idade Média propriamente dita nunca existiu, já que a divisão do tempo histórico em diferentes períodos cronológicos não passa de uma convenção que não corresponde à realidade. Afirma Heers que “cada sociedade inventa os seus bodes expiatórios, reflexo para justificar fracassos ou desenganos, e sobretudo para alimentar animosidades” e considera que “Idade Média” e “Renascimento” são “palavras inventadas”.
Nesta obra, é também refutado o mito do “Renascimento”, nomeadamente do progresso em relação ao tempo anterior, que foi uma criação de publicistas ao serviço de um príncipe que convinha glorificar.
Mas a lenda da Idade Média como período obscuro, que transformou palavras como “medieval” ou “feudal” em verdadeiros insultos, resulta de uma orquestração levada a cabo pelos revolucionários de 1789 e pelas escolas da História ‘engagée’.
Neste livro, o autor faz “uma contestação da noção de Idade Média em si própria, do seu carácter ambíguo e impreciso, e dos abusos que, com demasiada naturalidade, dela se fazem; e isto, em particular, face a outra entidade abstracta, igualmente vaga e arbitrária: o Renascimento”. Também procede ao “exame do afinco posto na condenação dos ‘tempos feudais’, e dessa literatura, cujos efeitos continuamos a sofrer, que se empenhou em apresentar o feudalismo a uma luz completamente falsa”. Por fim, faz “a análise de alguns aspectos de sociedade ou de civilização que essa lenda negra e os hábitos entretanto adquiridos ainda hoje apresentam sob uma aparência hedionda, mas a que muitos trabalhos recentes trazem interessantes e surpreendentes correcções”.

História e memória
Numa excelente entrevista concedida a “La Nouvelle Revue d’Histoire” em 2007, Jacques Heers explicou a oposição entre História e memória, a propósito do seu livro “L’Histoire assassinée”, afirmando que “a História e a memória não têm nada de comparável. São mesmo incompatíveis”. Para este historiador é uma questão que toca a situação actual, porque hoje se pensa que fazer memória é fazer História. Como ele explica, “a memória é a celebração ou a recordação do que se passou na vida de um indivíduo ou de uma comunidade. Mas, nesse exercício há apenas uma óptica onde não encontramos qualquer confrontação ou crítica. Ao passo que a História é uma reconstrução artificial e crítica que tem em conta diferentes ópticas”.

A importância das especiarias
Na sua investigação de doutoramento, Heers chegou à conclusão que o comercio de especiarias no Mediterrâneo nos séculos XIV e XV foi sobrevalorizado pelos historiadores. Na verdade, o trigo, o sal e outros produtos tinham muito mais importância que as especiarias, tanto em volume como valor nas trocas. Até Braudel, que sempre evocou a importância das especiarias nas trocas comerciais nesse período, reconheceu o valor científico das conclusões dos trabalhos de Heers.
Sobre a queda de Génova e de Veneza, Heers afirmou, na entrevista citada, que “teria sido provocada pelos portugueses quando estes descobriram a rota marítima das Índias pelo Cabo da Boa Esperança para trazer a melhor preço a pimenta e as especiarias. A pimenta e as especiarias estariam na origem da fortuna de Veneza e de Génova? Não. Génova deve a sua primeira riqueza à guerra e Veneza ao trigo e ao sal”.

O suposto contributo árabe
Outra das questões analisadas por Heers, que ainda hoje suscita polémica, é a da importância dos árabes na transmissão e na redescoberta do pensamento grego na Europa. Para ele, é algo que está sobrevalorizado, já que o ensino do pensamento grego no Ocidente “nunca cessou nas escolas catedrais e depois nas primeiras universidades. Servíamo-nos, então, de traduções latinas dos textos gregos originais que os clérigos e eruditos de Constantinopla haviam guardado e difundido em larga escala. As traduções do grego em língua árabe e do árabe para o latim apareceram relativamente tarde, quando o ensino já estava estabelecido no Ocidente, onde há mais de um século que a Lógica, directamente inspirada em Aristóteles, era reconhecida como uma das sete ‘artes liberais’ do curso universitário”.

Diálogos bibliófilos


— Não percebo estes descendentes que vendem as bibliotecas de família e não têm qualquer  preocupação em preservá-las! — exclamou, indignado, o bibliófilo pessimista.

— Se tal não acontecesse, nunca conseguiríamos formar bibliotecas como as que temos... — respondeu, com um sorriso, o bibliófilo optimista.

— Os livros têm que circular. — afirmou o alfarrabista.

Bem-vindos!

Permito-me saudar em nome de todos os Jovens do Restelo a chegada a esta teia mundial do blogue colectivo Prometheo Liberto.