Pena, Capital!

Fosse eu dado a teorias da conspiração e acharia a bom achar que a descida de Lisboa no algo arbitrário ranking das cidades, em termos de qualidade de vida, corresponderia a uma jogada das ominosas multinacionais e sinistras organizações supra-nacionais para diminuírem as ajudas de custo aos empregados que para a Cidade das Sete Colinas quisessem enviar. Só que quem cai no fanatismo da adesão a essas explicações raro mantém os olhos disponíveis para ver o que o rodeia. E, no caso, é muito mais simples e lastimável. Há muito menos carros que há dois anos, o que é positivo para o ambiente. Mas não se enxergam condições anímicas para fruir esse benefício. Entre lojas a fechar, menos dinheiro no bolso, incerteza angustiante e dor difusa perante as chicotadas de administrações insensíveis, entretanto tornadas a rotina, os passantes ostentam um ar deprimido como nunca antes notei e o perigo do contágio suscita uma preocupação crescente. No meio disto tudo, encontra-se num graffitto o desabafo descritivo que se impõe:
Jamais tinha sentido qualquer simpatia pelos gatafunhos que sujam paredes para dar vazão a vulcões internos exacerbados e sem dons de expressão superiores. Fazia minha a indignação desse Grande Defensor do Património que é o Bic Laranja e maquinava retribuições justiceiras que pintassem as caras dos borradores de muros com as próprias tintas. Mas perante a agressão constante a que os nossos Compatriotas vêm sendo sujeitos, dou comigo a sintonizar-me com os desabafos inscritos nos arruamentos por onde me movo e, até, a cantá-los. Ao que nós chegámos!

GRAFFITTI

Nunca saberei como e quem és,
Tu, que tomei por Alma-Gémea,
à mensagem em garatujas emanada
da parede da minha indiferença
agora felizmente alterada
pelas tintas que são tudo menos meias.
É certo, o expediente repugna,
macular com egos a pretensa harmonia.
Mas o imparcial não existe
e em excepção a tempo Te ergueste,
ao deixar-me o consolo indelével
de saber vogando por aí
alguém que sente como eu.
Foi na rude nota assim tangida,
urbana decerto, salvo no grito,
o encontro com prementes reservas elididas,
outorgantes do coincidir no julgar e no achar,
alívios drásticos duma opressiva solidão.

3 comentários:

  1. Não sei que mais possa acrescentar, num postal todo ele, infelizmente, certeiro. Se nunca formos um povo particularmente alegre, esta crise veio por a nu todo o desemparo e fragilidade de uma sociedade assente em castelos de areia.

    Beijinho Paulo

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  2. rudolfo moreira04/12/12, 15:09

    já todos estão a ver o autor do post mudar do blog para as paredes

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  3. Querida Ariel,
    com efeito, «Les portugais sont toujours gais» foi uma conveniência de rima para um estribilho de espectáculo musical do muito facilitista Charles Lecocq.
    Já Mircea Eliade dizia que «os portugueses sorriem sempre, mas, por trás desse sorriso, quanta tristeza!...». Claro que hoje nem essa fachada de tacha arreganhada, muito por virtude das taxas arreganhadas.

    Meu Caro Rudolfo,
    sempre teria audiência muito maior, ehehehehe.
    E registo a delicadeza e perspicácia presentes na sugestão de que, em matéria de Escrita, bem posso limpar as mãos à parede. Se estivesse na idade, lá escreveria para a Lapónia, a pedir um spray ao Velho das Barbas.

    Beijinho e abraço

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