Paris Está a Arder?

Num vislumbre de realismo, esse de Gaulle que alternava o prolongamento da dignidade das Nações com o retalhar sem escrúpulos delas disse que os seus contemporâneos eram os últimos europeus da Europa que foi a cristandade. Uma Europa desgarrada, mas que, apesar de tudo, existia. Outro tanto é difícil de dizer daquela em que vogamos, porque não há laço solidário cultural entre as populações. Apesar dos conflitos intestinos, a solidariedade Cristã na edificação política era um factor para que se remetia quando era preciso gerar o entusiasmo popular. Quem acredita que a moeda única, a que é de troca pela perda dos direitos sociais, encarne a mesma adesão das populações? Ao contrário, se ainda houver energia, com os trabalhos forçados que se vão incrementando, ela poderá ser é canalizada para a revolta.

Daí que as declarações do Presidente Barroso, dizendo que a cimeira que se escancarou ao diktat de Merkel lhe não usurpara poderes, quando o ultrapassou em toda a linha, é pouco menos que patética. E as do Sr. Sócrates, refugiando-se formalmente na "importância do entendimento", aqui usado como sinónimo de rendição, são tão-só patetas. Este Pacto de Competitividade, ao consagrar a liderança alemã de jure, fazendo todos correr atrás das decisões que Berlim toma na respectiva economia, transforma cada pretenso governante doutro parceiro europeu num gauleiter, o que, apesar de tudo, é mais perceptivelmente humilhante para o cidadão comum do que o director-geral de Bruxelas que cada um deles ia sendo.
A CEE fez-se para, além de fomentar a elevação dos rendimentos da agricultura, impedir uma nova Guerra, com a Alemanha como catalisador. Sem confronto militar, estamos perante a dominatrix germânica, na medida em que o contrapeso previsto no motor comunitário (o eixo-franco-alemão) se remeteu à correlata condição de submisso.
O problema da Europa já não está em ela gostar da violação pelo seu raptor, como Sardinha expôs perspicazmente num poema todavia mal ritmado. O mal, hoje, é que ela está prestes a jazer na praia à espera que alguém pegue e... sem o conseguir, a menos que se reduza por inteiro à condição valeryana de um cabo da Ásia.
A imagem é Europa de Oleg Bogomolov.

4 comentários:

  1. Bom dia,

    Parabéns pela iniciativa deste blogue conjunto, que pelo que vejo tem muita qualidade.
    Há muito que não via uma tão boa análise sobre o momento actual da integração europeia.
    Paris e o papel que os Pais Fundadores da Europa queriam para a França esfumou-se muito antes do carros que por lá arderam há uns anos.
    Não faço ideia se haverá ou não revolta. Há razões para que ela ocorra mas espero bem que não.
    No entanto o pior é que o Diktat surge por culpas próprias dos gauleiters que meterem as suas nações em trabalhos.
    Sem que exista uma verdadeira vontade de mudança dos dirigentes e mesmo da maior parte das pessoas e tentando evitar a intervenção hard-core do FMI, a pressão europeia/germânica é o menos mau.
    Mas enfim eu sou germanófilo e até nem acho que alguns Diktats sejam maus;)
    Continue o Bom Trabalho

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  2. Obrigado, Caro Escarapão: E Bem-Vindo!
    Sem dúvida que, comparativamente à balda financeiro-governativa que grassou em vários países, a conformação com uma disciplina, mesmo externamente imposta, pode ser uma arrepiar de caminho estimável. O priblema está em, a prazo, fazer aceitar as imposições às populações assim "corrigidas." Claro que o mal está nos desgovernos que as próprias elegeram, mas, ainda assim, a própria natureza da legitimidade dos novos senhores, porque similar, não é de molde a evitar perturbações, parece-me.
    Abraço

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  3. Concordo totalmente com a questão central da UE como está é a da Legitimidade. O paradoxo de ser um arauto da democracia para os outros, mas depois em casa não aceitar os resultados dos Povos até que estes votem do "lado certo" ou mudar os nomes às coisas, como aconteceu com o tratado de Lisboa que começou por ser Projecto de Constituição.
    Só que se aceitasse o Princípio Confederal em lugar deste Federalismo de Facto...
    Sou um Sonhador.
    Um Forte Abraço
    PS: Um dia se Deus quizer o Escarapão há-de morrer e renascer com nome próprio, pena é que escrever o que pensamos com nome próprio tem um preço que não estou preparado para pagar.

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  4. Nem me fale desse sujo artifício da mudança de nome, Meu Caro Escarapão, tal como das repetições de referendos desfavoráveis "à Dinamarquesa", com retoques cosméticos, esperando que o cansaço vencesse a reprovação...
    Esse é um dilema que vivem Pessoas com notoriedade, carreira e família que, na boçalidade do mmeio português semi-lido temem, justamente, vê-las conspurcadas por baixezas ou imputações de discordantes menos escrupulosos. Dou graças a Deus por ser um zé-ninguém e estar livre desses problemas.
    Mas esperamos com impaciência a assunção da identidade. Enquanto isso, relembre-se, o nickname, faz parte originária do jogo bloguístico.
    Abraço forte

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