Idiocracia


“[Até o século XIX] o idiota era apenas o idiota e como tal se comportava. E o primeiro a saber-se idiota era o próprio idiota. Não tinha ilusões. Julgando-se um inepto nato e hereditário, jamais se atreveu a mover uma palha, ou tirar um cadeira do lugar. Em 50, 100 ou 200 mil anos, nunca um idiota ousou questionar os valores da vida. Simplesmente, não pensava. Os "melhores" pensavam por ele, sentiam por ele, decidiam por ele. Deve-se a Marx o formidável despertar dos idiotas. Estes descobriram que são em maior número e sentiram a embriaguez da omnipotência numérica. E, então, aquele sujeito que, há 500 mil anos, limitava-se a babar na gravata, passou a existir socialmente, economicamente, politicamente, culturalmente etc. houve, em toda parte, a explosão triunfal dos idiotas.”

Nelson Rodrigues

2 comentários:

  1. Excepcional esta análise de Nelson Rodrigues sobre os idiotas, que no presente são em número incalculável. Eles representam, como diz e bem o autor, a verdadeira explosão triunfal dos idiotas. O grande drama da Humanidade é que são eles precisamente quem comanda o mundo.
    Maria

    ResponderEliminar
  2. Mais do que propriamente um fenómeno de surgimento, a dita "explosão triunfal" tratou-se da manifestação culminante dum processo em curso por séculos. De facto, há uma componente genética e outra sócio-familiar na inteligência e na sua definição como elite organizada. Durante a Antiguidade, o sábio era reconhecido e juntava-se ao seu semelhante, transmitindo a sua habilidade académica e trangeracionalmente. O saber era matéria de prestígio e devoção.
    Na queda do Império Romano, o foco de prestígio migra para a força e coragem, e o êxodo urbano acentua a desagregação da elite intelectual. Também o facto de a intelectualidade ser maioritariamente clerical ajuda a que a transgeracionalidade não seja devidamente assegurada. Já no Renascimento, com a inspiração clássica, dá-se uma explosão de nova intelectualidade, pelo processo da Antiguidade, e o resultado em termos de criação cultural foi inexcedível.

    Contudo, e acima de tudo pelo aumento demográfico que desde o século XVI se deu na Europa (muito acentuado pela Revolução Agrícola e, posteriormente, Industrial), é o camponês intelectualmente indigente e posteriormente o operário sobreviventista que beneficiam, quer em números absolutos quer em proporcionalidade, duma ascensão de peso na Sociedade. Dá-se a migração do objectivo estético aristocrático de elegância para a mísera estética burguesa do kitsch nas suas multiformas e a intelectualidade é subjugada à utilidade económica, ou seja, ao burguesíssimo comércio. Desvirtuada e desfigurada, é cada vez menos um valor per se, e cria-se o típico académico de hoje em dia como "homem do saber": um especialista dum determinado assunto (como criticado por Nietzsche), um incapaz de viver e pensar livremente, um homem desprovido de conhecimento eclético ou de apreciação estética e artística do Mundo, mas ainda assim convencido da sua superioridade pelo aspecto burocrático do "canudo".

    A nível social e político, o marxismo é a expressão/sintoma lógico de tal tipo de intelectualidade. Outra não seria de esperar.

    ResponderEliminar