Lisboa Sempre



Para além de tudo o que aqui atrás ficou escrito sobre a fita, acrescento: em Lisboa, Crónica Anedótica (Portugal, 1930), Leitão de Barros filma os ciclos da vida — da infância à velhice — de uma forma espiritual e bela. As caras e os corpos são retratados com profundidade e sensualidade. É um esteta voyeur que vampiriza as pulsões eróticas das mulheres e homens de Lisboa — nessa inebriante viragem de décadas —, sem, contudo, lhes retirar a energia, ou — muito menos — a alma. Afinal, este autor é também um humanista, com toda o peso histórico e estético que a palavra contém. Assim, atravessando bairros e estractos sociais, mostra várias personagens anónimas da Capital, com notáveis grandes planos de rostos, em toda as suas expressivas personalidades. Por outro lado, quando se trata de planos gerais, como na espantosa sequência das Forças Armadas, com Armada e Exército, os movimentos dos grupos adquirem um valor balético e coreográfico inexcedível até hoje no Cinema Português. Nestas cenas, o efeito de ralenti vem sublinhar a beleza plástica e rítmica das acções: os marinheiros do Navio-Escola Sagres são elevados, nas suas simples tarefas diárias — depois de captados pela sua câmara voyeurista e verista, e após a dinâmica montagem —, à categoria de heróis clássicos, na dimensão escultórica dos corpos atléticos e na coreografia dos marciais movimentos colectivos. Aqui cheira a Couraçado, de Eisenstein, como aliás ao longo de toda a película também se sente Vertov; mas, cá para mim (meu Deus, o que eu vou dizer...), vai-se mais longe em poesia do olhar, pois também pressentimos a influência das vanguardas cinematográficas francesas e alemãs. Leitão de Barros usa Lisboa e os lisboetas como matéria-prima para edificar um filme de arte, simultaneamente lírico e épico, original sinfonia de uma capital, com as fortes marcas identitárias da cidade à vista — onde, ainda hoje, todos nos reconhecemos. Destacaria, a finalizar estas notas de visionamento, escritas e reescritas ao correr das teclas, e só estas, porque este filme não se encerra — pois fugiria certamente! —, uma última sequência: o treino de uma belíssima carga (homens de espada em riste e cavalos galopando, em plena harmonia) levada a cabo pelo Regimento de Cavalaria 7 (onde o meu Pai foi oficial miliciano, diga-se de passagem) ; nestas imagens, em slow motion, é toda uma Ética de Cavalaria — para sempre perdida — que desfila à nossa frente. E, assim, através dessa simbólica manobra militar, vemos, claramente, o fim de toda uma Época. De arrepiar.

3 comentários:

  1. Desculpe afastar-me do tema, mas não vejo outro modo de lhe vir dar os parabéns pelo aniversário do seu excelentíssimo Blog, um dia atrazada embora, neste espaço onde também colabora, já que o seu outro não permite comentários. Escusado será dizer-lhe que continuo com a mesma opinião de sempre sobre as qualidades ímpares daquele: é claro, conciso, inteligente, oportuno, original na escrita e nos escritos. E um conhecedor profundo de tudo o que esteja relacionado com a insuperável sétima arte, como poucos.

    Tome lá o repouso que necessita e diz merecer - concordo em absoluto com esse seu desejo, cinco anos de escrita diária não é coisa pouca - e depois volte, conforme prometeu, retomando os seus textos (no estilo e na forma verdadeiramente únicos) e de quando em vez surpreenda-nos com esses seus pensamentos e/ou reflexões cheios de subtileza e muito saber (e não raro um tudo nada enigmáticos) alguns dos quais dão muito que pensar para quem souber lê-los com olhos de ver.

    Ah! Felicito-o ainda por deixar bem explícito não ser um livre-pensador..., mas sim um pensador livre :)
    Maria

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  2. Já nem sei como agradecer-lhe os seus simpáticos comentários, cara leitora Maria.
    Certo, certinho, é que são palavras assim que me dão ânimo para - depois da pequena «pausa para balanço e para tomar balanço» - voltar à carga com renovada energia.
    E deixo mais uma vez o desafio da praxe: Quando é que a Maria faz um blogue? A blogosfera precisa de uma renovação de gerações como de pão para a boca! Muitos «pioneiros» da «velha guarda da blogosfera nacional» já se cansaram ou já deram o que tinham a dar e precisamos agora de «sangue novo». Pense nisso...

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    1. Uma pequenina falta no meu anterior comentário passou despercebida porque não o reli: "Tome lá o repouso DE que necessita...". A preposição é necessária para que a proposição esteja correcta.

      Isso de um Blogo pessoal, já lhe explico mais abaixo.

      Um bocadinho fora do contexto, permita-me deixar aos leitores interessados a seguinte nota: o vocábulo "Blog", seguindo as antigas regras filológicas relativamente ao aportuguesamento de vocábulos estrangeiros, neste caso do inglês para o português - salvo as excepções, que as há como em tudo - criteriosamente estudadas e adoptadas pelos mais insígnes linguístas conjuntamente com filólogos e colaboradores especializados - deverá adoptar aquela terminação. Tal como o prestigiado autor do excelente Blogo Bic Laranja o fez há bastante tempo e muito bem. Para ser breve, um só exemplo: a antiga revista feminina inglesa "Vogue", passou a "Voga" no nosso país. Nem sabia que tinha existido essa revista em português, tomei conhecimento no Bic Laranja. A terminação deste título em "a" dá-se por se tratar de um substantivo feminino. Já em Blog/Blogo, a terminação terá que ser em "o" porque estamos perante um vocábulo masculino. Algumas pessoas grafam "blogue" e poder-se-á utilizar esta grafia sem se tratar de, julgo eu, um erro crasso, mas poderíamos estar eventualmente perante uma grafia genuìnamente inglesa justamente pela sua terminação em "gue". Seguindo o mesmo raciocínio e numa adaptação aportuguesada do (já?) instituído vocábulo blogosfera/blogosférico, não se escreve 'bloguesfera/bloguesférico').

      Voltando ao início do parágrafo. Como lhe disse anteriormente, dar vida a um Blogo de minha autoria talvez fique para mais tarde.
      Porque, além do mais, o temporão que eu levo a ler os vários textos blogosféricos que me interessam mais alguns comentários, já descontando o tempo que dedico a trabalhos que tenho entre mãos, pelo menos nos meses (ou se calhar anos) mais próximos uma façanha de tal monta torna-se-me impossível.

      Sabe que mais? Já lá vai bastante tempo cheguei a abrir um espaço destes, mas por motivos que não vêm ao caso nem sequer o iniciei... Se algum dia o fizer o tema-base será a "política" nacional e internacional. O problema é que a política em Portugal (e no mundo) tem-me surpreendido negativamente tanto e de tal modo que não exagero se disser que uma profunda tristeza me invade a alma retirando-me quase por completo a alegria de viver e olhe que isto é difícil perante uma pessoa que por temperamento sempre foi super alegre, ultra positiva, muito activa e óptima profissional em todos os trabalhos em que esteve envolvida. Tudo isto se foi esfumando dado o catastrófico cenário político em que nos encontramos e a tremenda desilusão sofrida perante actos infamantes praticados por a maior parte das personalidades que detiveram e ainda detêm altos cargos neste país e algumas outras fora da política mas a ela chegadas e sobejamente de todos conhecidas, nas quais depositava a maior confiança política e por quem relativamente à integridade pessoal tinha o máximo respeito. Ante tal podridão nacional, reflexo do que se passa a nível mundial, francamente não sei se algum dia estarei suficientemente motivada e novamente em paz com o mundo e sobretudo interiormente feliz para me sentir capaz de o empreender.

      Mas ande lá que não me vou esquecer das suas encorajantes e bonitas palavras. Principalmente porque vindas d'alguém tão positivo quanto parece ser e cujas palavras, exactamente por isso mas não só, tão bem fazem à alma.

      Entretanto, se lhe for possível, não demore muito nas suas deambulações - aqui, não referentes a lazer mas òbviamente a trabalho - extra-blogosféricas porque pensamentos ou textos saídos das teclas de escritores/cronistas/articulistas, como queira, do seu calibre (e agora sou eu que digo:)) fazem falta aos seus fiéis leitores. E até aos que o não são.
      Maria

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