Uma biografia infamante

Parece que Mega Ferreira padecia de um trauma juvenil por obra sem graça de José Agostinho de Macedo, em episódio ocorrido no Pedro Nunes. Vai daí, seguindo as melhores práticas psiquiátricas, decide ajustar contas com o padre oratoriano, aliviando-se num livro que é menos biografia que libelo descarado.
A obra tardou umas décadas, mas chegou. Levou tempo o escriba a mudar de vestimenta. Teve de desajoujar-se dos paramentos de gestor, e de buscar novo preparo nas alfurjas da historiografia politizada. Vem de biógrafo, doublé de historiador e novelista — e vamos lá que lhe assenta a matar.
José Agostinho tinha dois ódios de estimação: a seita pedreiral (maçonaria) e os malhados (liberais). Já Mega parece manter um só ódio, grande e entranhado, ao pregador régio. Ele próprio, já quase no fim de esguichar as sentenças odiosas, reconhece o seu "parti-pris em relação a Macedo" (p. 307). O padre escapou à Inquisição; ao cabo de 200 anos não consegue fugir dos tratos de polé do torcionário Mega.
Para redigir o destampatório, diz o autor que mergulhou no "conturbadíssimo reinado de D. João V" e fez-se "liberal, constituinte, depois cartista". Confessa com apreciável franqueza que só não conseguiu colocar-se na "pele do miguelismo, que é absurdo político e inanidade moral" (p. 13). Diz que era em tascas que se reunia "a canalha miguelista" (p. 276). Com profundos complexos de plebeu, grafa o nome inteiro de D. Miguel por zombaria: "desculpem, mas não resisti a dar-lhe o nome completo…", explica na página 264, esquecido de que o mano Pedro, de que ele tanto gosta, ostentava um nome igual de extenso.


Ao longo das quase quatrocentas páginas do seu livro meganovelizado, não dá tréguas à macedofobia. Desanca o padre nas suas contradições, venalidade e amores freiráticos. Os democratas são assim. Respeitam a intimidade de todos, salvo dos inimigos. Destes já se pelam eles por exibir à farta as misérias de alcova. Sobre as contradições e a venalidade, estamos conversados. As primeiras são hoje consideradas uma qualidade (só os burros não mudam, diz-se agora); e mesmo a segunda não anda longe disso. Mas neste exibir da fraqueza, sinto que Mega descobriu no biografado os traços do seu próprio timbre moral. Deparou-se-lhe a estrada de Damasco nas pensões e tenças de Macedo, de onde não mais se desferrou. Que podia o velho padre fazer? Como ainda não houvesse Parque Expo nem Centro Cultural de Belém para que os homens íntegros, de rabinho sentado nos conselhos de administração, pudessem abichar salários e prebendas — os antigos desenrascavam-se com os reis e os contratadores de tabaco.
De qualquer modo, este método de catar as impurezas privadas tem os seus méritos. Aplicado aos dias que correm, serviria para sarjar fundamente as carnes destes desgraçados da III República, que forcejam — eles, sim — na incoerência e na roubalheira.
Apesar do esforço de Mega, o padre José Agostinho de Macedo continua a ser um polemista de mão cheia, à antiga portuguesa, do tempo das velhas pelejas políticas e literárias, antes dos totós terem descoberto as virtudes do diálogo, do consenso e das palmadinhas nas costas. Várias obras do verrinoso Macedo merecem ser hoje lidas e relidas: desde logo, o seu sermonário, sobretudo o Sermão sobre a Verdade da Religião Católica e o Sermão do Primeiro Domingo do Advento, mas também as Cartas Filosóficas a Attico, os 4 volumes do Motim Literário, algumas páginas políticas e o conteúdo infrene de A Besta Esfolada.
Da obra do Mega ninguém dirá o mesmo daqui por uns anos.

2 comentários:

  1. O Megalimária espinoteeou e abegoou tal bosta?

    Já não lhe bastavam os haikus de poetastro, arrotados nos intervalos da gestão ruinosa do CCB!

    E fala o gozador sibarita de "inanidade moral"...

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  2. Um texto sobre este assunto tinha mesmo de ser feito; e, não conheço ninguém melhor do que tu para o escrever, Bruno. Ainda bem que decidiste meter mão à obra. Bravo!

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