Da excepção à regra

No último sábado, a revista Única, suplemento do semanário Expresso, publicou uma entrevista com o poeta Nuno Júdice. Apesar de orientada pela inenarrável Clara Ferreira Alves, a conversa tem algum interesse. Chamo conversa porque a frequência com que esta loira do regime (não no sentido que Menezes cunhou o termo, atenção!) introduz as suas próprias opiniões é assustadora. Mesmo assim, não resisto a partilhar aqui o seguinte excerto:
"E não achas que esse silêncio faz perder influência? E a influência da literatura era importante na formação do pensamento político. Lembramo-nos do Mitterrand. Ou, na América do Norte, da influência de gente como Norman Mailer, Saul Bellow. Dos escritores da América Latina. Acabou. Esse afastamento do escritor vem de um pensamento politicamente correcto que tem vindo a ganhar peso no mundo, impondo-se. O escritor quando fala e se empenha está a assumir uma posição individual, e quando esse olhar é formatado pelo politicamente correcto ninguém se atreve. Como é que um escritor se vai atrever, por exemplo, a justificar um acto terrorista num determinado país? Esse acto, há 40 ou 50 anos, seria elogiado pelo mundo intelectual de esquerda, que elogiava as bombas que rebentavam no Vietname e no Camboja, ou nos cafés de Paris, e que faziam vítimas. Essas vítimas eram justificadas por uma ideologia, um sonho utópico. Hoje, essa atitude iria condenar o escritor e proscrevê-lo.
Pensar contra a corrente é da essência da liberdade intelectual... Sim. Nunca vivemos tão livres, mas o pensamento é hoje muito pouco livre. 
Tradicionalmente, os escritores e artistas são dessa área, com aquelas excepções, algumas trágicas, que conhecemos. Céline, Pound e por aí fora. Viste o que aconteceu com o Céline, em França. Proscrito. Exacto. Acho um erro tremendo. Céline, quando escrevia aqueles panfletos, estava num contexto, e era um mundo louco. Ele foi embarcado, como Ezra Pound. Não podemos julgar com critérios actuais o que foi vivido por outros noutro tempo, por abominável que possa parecer. Ao escrever, o Céline estava a usar de uma liberdade total. Como o Marquês de Sade, com as matanças e orgias dos seus romances."
Em primeiro lugar, se já não o suspeitássemos, ficamos a saber que o horizonte de Clara Ferreira Alves não vai muito além do seu quintal. Ao afirmar que «tradicionalmente, os escritores e artistas são» de esquerda e que o resto são algumas bizarras excepções, a cronista ignora que esses foram os artistas e escritores que sobreviveram à nova ordem que se seguiu à Segunda Guerra Mundial. Esquece-se (ou não sabe) que os regimes que perderam a guerra tinham o apoio de inúmeros intelectuais, escritores e artistas de inegável talento, que depois de 1945 foram presos, fuzilados ou silenciados. No entanto, o mais interessante da entrevista é a afirmação de Nuno Júdice: «nunca vivemos tão livres, mas o pensamento é hoje muito pouco livre». De facto, a actual liberdade de costumes contrasta com a exiguidade do pensamento. Existe uma margem oficial de pensamento que formatou as páginas dos jornais, o espaço de comentário nas televisões e as estantes das livrarias, que determina o que é certo ou errado dizer. Quem ousa pensar fora da caixa é imediatamente catalogado de marginal e corre o risco de ficar infrequentável para sempre. Estamos sempre mais perto de 1984 do que pensaríamos.

3 comentários:

  1. Pois é, meu caro, se fizéssemos uma lista dos enormíssimos talentos que não são da área dessa besta quadrada nunca mais acabávamos.

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  2. «Estamos sempre mais perto de 1984 do que pensaríamos.»

    Mais perto do Admirável Mundo Novo do que da Oceania.

    NC

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  3. Caro atrida,
    A dona Clara só lê o que está em destaque na Fnac. Abraço.

    Caro NC,
    Já li várias vezes que a distopia que realmente vingou foi a de Huxley. No entanto, continuo a achar que as duas visões se complementam. E se o nosso tempo tem muito desse «Admirável Mundo Novo», nunca devemos esquecer a proximidade da Novilíngua. Abraço.

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