Tiros no Escuro

O Mal deveria ser sempre um mistério, mas a Experiência e a Observação fazem-nos encará-lo como tal só quando não deslindamos um motivo plausível para as acções que o concretizam. Infelizmente, a entrada de pistoleiros assassinos em escolas dos EUA já só é notícia pelo que traz de revolta, não pela raridade. E aí julgo residir, justamente, a motivação de muitos dos repelentes protagonistas destes massacres: querem a todo o querer a evidência da repulsa, porque, havendo cultivado no íntimo alguma revolta contra a sociedade, só imaginam eficaz uma vingança dela com uma actuação que ainda a choque. Como poucas já o conseguem fazer, matar os próprios pais ou crianças que a nossa reserva de Esperança tende a ver, pela inocência, como o Futuro melhor, são os meios mais à mão. No caso do Connecticut que faz as parangonas dos jornais, nem se pode acusar de ser a região apegada aos hábitos do Farwest, ou das tensões sempre sublinhadas nas comunidades do Sul, mas um Estado da Nova Inglaterra onde se duvida da própria subsistência de Conservadores e tudo é progressisticamente instituído. A discussão sobre o controlo de armas é uma diversão. Eu até acho que o acesso a muitas classes delas deve ser restringido, mas claro que não se disparam sozinhas e aquele País continua a ver parte da sua dignidade construída na concessão universal e constitucional do direito de as usar, para igualar-se à Nobreza setecentista da Nação colonizadora. Além de que paragens em que o acesso às ferramentas da morte é condicionado não desconhecem estes tristes episódios. Na China, recentemente, canalizou-se para um surto de navalhadas escolares. Então, por que é que o assassínio em massa é tão repetido na vida Norte-Americana e tão lamentavelmente emblemático dela? Talvez por toda a estrutura daquela ser pensada em função da quantidade: foi-o a exploração do gado, a expansão da União em território e população, a produção industrial nas cadeias de montagem. Se juntarmos a esta matéria inflamável o rastilho das coberturas televisivas hiperbólicas, está criada a conjugação que faça rebentar a Maldade eventualmente acumulada. Por uma irronia do destino, o nome próprio do desafogado e escolarmente brilhante Sr. Lanza era Adam. Não será o Maligno, depositado à espera de serpentes detonadoras, simbólica maior da nossa condição, a chave que cada vez mais nos custa a aceitar?
                                                                  Adão, de Hans Baldung Grien

6 comentários:

  1. Meu Caro Paulo,

    Tenho que atribuir aquele "assassínio em massa, emblemático da vida Norte-Americana", a um raríssimo lapsus calami Seu. Stalin, Hitler, Mao, Pol Pot, Saddam, Milošević (apenas alguns exemplos), isso sim, foram assassinos em massa e podemos esgaravatar na História que não encontraremos um único americano. Estes pistoleiros serão, quando muito, assassinos em série, e mesmo assim teremos que juntar uma série deles se quisermos chegar aos calcanhares de um norueguês de recente e triste memória.

    Reparada a escorregadela :), deixe-me dizer-Lhe que me parece muito bem assacar as culpas destes actos tresloucados ao Mafarrico, uma vez que nós, simples mortais, já temos miséria de sobra que nos tire o sono. Estou convencido que até um Católico depois de redimido pelo seu Vigário, não mais dormiria sossegado se praticasse tal selvajaria!

    Forte abraço

    ResponderEliminar
  2. Meu Caro Pedro,
    a designação de "assassino em série" parece ter lugar cativo para descrever malfeitorias praticadas em momentos diferentes, formando assim o macabro seriado. A "massa" surge-me adequada a um morticínio múltiplo no mesmo local e instante.
    Mas já concordo que esses que referiu também o seriam, embora talvez dentro do universo de semelhantes cometimentos, por terem a faca e o queijo do Poder nas mãos, se classifiquem muito acima, digamos, hã, por goal-average...
    O facto de os particulares americanos que se distinguem no sinistro campo de actividade serem uma espécie de amadores é uma atenuante, ou uma agravante, tendo em mente a afeição e já não uma contrafeita ne4cessidade relativa aos actos horrendos? E um advogado do tal Chifrudo que Lhe examinasse a tese talvez até insinuasse que os tiranos referidos podiam ser um excepcional acidente na História que acontece nas melhores famílias, digo, Nações, enquanto que a recorrência de episódios de terror como o de ontem correm o risco de aparecer como característicos de uma sociedade, apesar de a esmagadora maioria dos componentes dela não alinharem pelo diapasão e até serem dele vítimas potenciais.
    Quanto ao Sujeito do Pé Fendido, já se sabe que as investidas dele não inocentam quem quer que aceite a sua (dele) regência, pelo contrário é um elemento de culpa que torna a infracção qualificada, no sentido peal do termo.

    Abraço amigo

    ResponderEliminar
  3. Caríssimo Paulo,

    Tem toda a razão o meu Amigo! É no que me dá a mania dos anglicanismos. Queria usar "série" no sentido de "quantidade considerável" e nem me lembrei que o termo "assassino em série" está cativo para os casos que mencionou. Acabei foi a fazer uma considerável figura de urso!
    Mas agora deixe-me recordar ao advogado do Beiçudo os episódios biblicos, onde a norma e não a excepção era passar os povos derrotados a fio de espada. E perguntar-lhe se o que hoje nos é dado observar nesses lugares mesopotâmicos assim como os discursos que de lá nos chegam não nos farão temer que as "excepções" estão aí para continuar. E já agora, last but not least, se não andará o manhoso do Tinhoso a servir-nos estes e outros episódios lá no país dos sonhos (característica que eu prefiro relevar nos EUA), para nos manter distraídos do verdadeiro terror que se prepara na nossa família, digo, Nação.

    Mais outro abraço

    ResponderEliminar
  4. Ah, Meu Muito Caro Pedro,

    nada de ursices, é a confusão que grassa desde o episódio de Babel, é o que é!
    Mas quanto ao ponto que nos traz, não tenha dúvida, se já desde Baudelaire - e creio que também numa alusão de Pascal -, sabemos que a mais bela astúcia do Maligno é tentar fazer-nos crer que ele não existe, a segunda delas atrevo-me. a dizê-lo, poderá encontrar-se na Globalização que nos desvie a atenção do Inferno em que já estamos, fazendo-nos, assim, a cama para aqueloutro que nos prepara!

    Grande abraço

    ResponderEliminar
  5. Querido Paulo,

    Acredito que seja obra do Maligno, que outra explicação poderá haver que não seja a do Chifrudo ter uma delegação permanente no GOP que impede a sociedade americana de fazer um debate sereno, esclarecido e pedagógico sobre a questão das armas? Lá se ia o lucrativo negócio das armas pelo cano abaixo...

    Beijinho

    ResponderEliminar
  6. Não é só no GOP, Querida Ariel. Também uma maioria de Democratas e não só do Sul, acha o mesmo. Mas a coisa é mais profunda que a negociata, embora esta não seja de desprezar. A ironia é que isto aconteceu num dos poucos Estados em que o controlo de armas tem maiores simpatias!

    Beijinho

    ResponderEliminar