A biografia de Luiz Pacheco

Pouca gente estima verdadeiramente Luiz Pacheco, o nosso Henry Miller de-entre-Estefânea-e-Massamá, escritor verrinoso e marginal, nesta terra veneradora do respeitinho e do bom nome.
A biografia dada à estampa por João Pedro George é um calhamaço de 600 páginas, um documento fundamental para conhecer o autor libertino e abjeccionista. Asmático, bissexual, senhor de uma vida desregrada, alimentou carinhosamente o enfisema pulmonar com cigarros cravados. Sofreu ademais de angina de peito, eczema, sífilis, úlceras e por vezes subnutrição, para além de deficiências hormonais e glandulares. Como o próprio reconhecia, a ter de recolher a clínica especializada, forçoso seria que o internassem ao mesmo tempo aí numas dez! Pedinchão e inconveniente, esteve preso duas ou três vezes. Pícaro e meio vagabundo, de poiso incerto e rendas por pagar, andou de hospital em hospital para tratar o alcoolismo e de clínica psiquiátrica em clínica psiquiátrica para consertar a maluqueira. Tentou "ser feliz neste mundo, sem os atavios dos electrodomésticos, dos popós, da fortuna, da vida airada". Míope de 17 dioptrias, usava uns óculos-fundo-de-garrafa e vestia o que calhava, consoante as ofertas de amigos e conhecidos. Nos bolsos trazia de tudo: aspirinas, bombas da asma, restos de comida, papéis — uma lixeirada bastante para certificar a fama de excêntrico.


Nascido em Lisboa em 1925, pertenceu à Mocidade Portuguesa e foi germanófilo durante a II Guerra Mundial. Era o seu feitio do contra a manifestar-se, para afrontar os democratinhas que ouviam o Pessa na BBC "à espera que a vitória dos Aliados fosse o fim do regime salazarista".
Fora do sistema, de qualquer sistema, gozou que nem um preto com os videirinhos que buscavam a consagração. Demonstrou com provas irrefutáveis que Fernando Namora, no romance Domingo à tarde (1961), tinha plagiado Vergílio Ferreira, ante o escândalo do Baptista-Bastos e dos outros marmelos do neo-realismo.
Vale a pena ler Pacheco porque a sua prosa expõe com meridiana clareza um meio literário constituído por "padrinhos" e "amigalhaços", e dominado pela máfia cultural de esquerda. A partir dos anos 50, em pleno Estado Novo, a esquerda tomou conta dos jornais, das editoras, dos prémios e da "fabricação da fama e do prestígio" (p. 159). Por esses tempos, já Pacheco denunciava a "censura do compadrio", tão má ou pior do que a oficial.
Em plena revolução, foi para o Largo do Carmo de pijama e chinelos. No texto "O meu 25 de Abril" deixa-nos desse dia um relato bem diferente dos que aparecem nas reportagens ou nos discursos comemorativos — uma população assaltada pelo pânico, a açambarcar bens de primeira necessidade e a fechar-se em casa, de estores cerrados: "Já vejo lojas fechadas, outras a fechar à pressa e uma data de tontos a abastecerem-se para o ano todo […] Venho a pé até às portas de Bemfica e o ambiente é o mesmo: fila de carros a safarem-se, o comércio encerrado, mulheres com sacos de plástico cheios, tensão […] Um tipo ao meu lado compra 8 maços de Português Suave".
Sem qualquer espanto, assiste à "grande correria à promoção, aos tachos" e antevê o resto da fita com lucidez: "O que vamos ter é uma animação mais viva (no disparate, na violência, no desplante)". Talvez por tudo isto chega a declarar bons lustros depois que "o 25 de Abril não foi importante".
Sarcástico, de prosa viva, com um estilo próprio e sentido de humor, Pacheco é uma bofetada literária — ao menos literária... — em quantos rafeiros ainda agora andam por aí a armar aos cucos sem um pingo do seu talento.

1 comentário:

  1. Gostei do texto. Bem escrito e descrito o personagem central.

    Isabel Vilaverde.

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