Alegria de Viver


Em Dezembro de 1932, iniciaram-se os trabalhos de edificação do estúdio cinematográfico da Tobis, na Quinta das Conchas, ao Lumiar, em Lisboa. No início do ano, tinha sido dado o arranque para a Companhia Portuguesa de Filmes Sonoros Tobis Klang Film, que se constituiu formalmente em Junho de 1932. Este nome ficou a dever-se à casa-mãe alemã (Tobis, abreviatura de Tonbild SyndiKat), por ter sido esta a fornecer-lhe a aparelhagem técnica. Lisboa e Berlim surgem assim de mãos dadas, para o advento do Cinema Sonoro em Portugal.
O então jovem arquitecto Cottinelli Telmo desenha e orienta a construção do estúdio, num radical projecto de fino recorte moderno e funcional, em articulação com a bela paisagem envolvente. José Ângelo Cottinelli Telmo nasceu em Lisboa, em Novembro de 1897, e viria a morrer num trágico acidente de pesca desportiva na Praia do Guincho, sportsman que era, em 1948. Filho de músicos, entra em 1915 para as Belas-Artes de Lisboa, a fim de cursar Arquitectura. Antes de aí se licenciar, em 1920, Cottinelli participa nas animadas tertúlias do Chiado, onde convive com os «novos», virando as costas ao academismo passadista da escola. Dessas relações sairiam, por exemplo, trabalhos para bailados (com Almada Negreiros), bandas desenhadas (para o ABC), décors de filmes de Leitão de Barros, etc e tal. Revelou-se, ainda, como actor e compositor, nas festas de estudantes de Belas-Artes. Como arquitecto, constrói alguns dos primeiros edifícios modernistas de Lisboa: Stand da FIAT (Av.da Liberdade, 1926-1929); Estação Fluvial do Terreiro do Paço (1928-1932); e, finalmente, a nossa Tobis. Carreira esta que atingiria o apogeu com a sua nomeação para arquitecto-chefe da Exposição do Mundo Português, em 1940.
Foi, por esta altura, o principal colaborador de Duarte Pacheco (se este não tivesse morrido em 1943, Cottinelli em 1948, e Ferro em 1956, a História das Artes e dos Espectáculos, no Século XX, em Portugal, teria cantado mais alto… mas, essa é outra história… fica para a próxima).
A Tobis só ficou concluída no ano de 1934. No entanto, antes disso, Portugal vai ter o seu primeiro filme sonoro rodado aí, num plateau improvisado. Ao mesmo tempo que orienta a construção do estúdio, que, no local, era dirigida pelo francês A. P. Richard, Telmo escrevia e realizava A Canção de Lisboa, tendo como conselheiro técnico Chianca de Garcia, outro dos grandes entusiastas da Tobis, desde a primeira hora, a par de Cottinelli Telmo e Leitão de Barros.
A Canção de Lisboa surge, pois, como fruto da gente nova, formada na cinefilia, no culto das Artes, e no bom-gosto. Se esta nova geração está pronta, e as infra-estruturas lançadas no terreno, faltavam ainda técnicos e actores para dar corpo ao primeiro filme sonoro totalmente feito (rodado e sonorizado) em Portugal.
Olhando com atenção para a ficha técnica (hábito perdido nos apressados dias de hoje, onde nos servem ao domicílio os filmes amputados dessa parte), descobrimos toda a fina-flor da Arte Portuguesa de então. O próprio genérico é de Almada Negreiros, que desenha também os dois cartazes do filme; o pintor Carlos Botelho é assistente de realização; José Galhardo escreve os inesquecíveis diálogos e as letras das canções, que passam de pais para filhos há mais de setenta anos; encontramos um trio de luxo na fotografia — Henri Barreyre, Octávio Bobone e César de Sá; o «russo branco» — vindo do Cinema Mudo Russo (pré-soviético; pois não foram os comunistas que lá inventaram o Cinema, como alguns parecem pensar) — Chakatonny; o engenheiro Paulo de Brito Aranha na direcção de som (cargo que iria manter na Tobis, por largos anos); o poeta José Gomes Ferreira — esse mesmo! — na assistência de montagem; Raul Ferrão e Raul Portela na autoria da música das canções; e, por aí fora…
Os actores constituem um elenco «de se lhe tirar o chapéu»: Vasco Santana, Beatriz Costa, António Silva, Teresa Gomes, Álvaro de Almeida, Manuel Santos Carvalho, e o jovem realizador Manoel de Oliveira, numa breve aparição como o galã, bon-vivant (que, de facto, era) e fiel amigo, Carlos, do desgraçado Vasquinho (Vasco Santana).
A articulação entre as equipas técnica e artística contou com a preciosa colaboração de técnicos profissionais vindos, essencialmente, da Alemanha e de França: Hans-Christof Wolhrab, Tonka Taldy, Jeanette Pakon, para além dos já nomeados anteriormente.
Sinal dos tempos, é de referir que Beatriz Costa saía de uma peça de teatro de revista, em cena na altura, onde era cabeça de cartaz, às duas horas da manhã, e apresentava-se às sete horas, da mesma manhã, na Tobis, impecavelmente maquilhada, à espera da ordem: «Acção!».
Por tudo isto, estamos perante um filme fundador: não só do Cinema Sonoro Português, mas do género fílmico da Comédia Portuguesa. Até hoje, tudo o que se tenta fazer, neste domínio, continua a ter como referência e influência A Canção de Lisboa.
Não vamos contar aqui a história da fita, pois ela está gravada na memória colectiva das famílias da nossa Terra. Parece-me é ser importante, para os intelectuais desconfiados do género cómico, lembrar que, à época, também René Clair e Jean Renoir o praticavam, na Europa; e, vendo a nossa Canção ao lado dessas películas, percebemos que o Cinema Português esteve alinhado com o «espírito do tempo» e conseguiu — simultaneamente — ser espelho da comunidade lisboeta, em todos os seus detalhes de puzzle social complexo, por de trás de uma aparente simplicidade brejeira.
Não basta, de facto, olhar. É preciso ver. E, para isso, há que lavar os olhos entre dois olhares, libertando-os de preconceitos aviados em estilo erudito por certos escribas da nossa praça que conseguem descortinar maravilhas nos mais obscuros objectos (antes fosse o do Buñuel) e cegar perante a luminosidade d’A Canção de Lisboa.
Aproveitemos esta Quadra de Vida para a revermos — em Família.
Alguns cépticos perguntarão ainda: «Mas o que é que a fita tem?». Tem uma história bem contada — o estudante de Medicina, apaixonado pela costureirinha do bairro, filha de um «pai tirano», surpreendido pelas velhas tias tontas, mas ricas, e provincianas —, diálogos de extraordinário ritmo — ditos com irrepreensível dicção, e cheios de segundos sentidos e trocadilhos —, actores que representam com alegria e vivacidade, uma bela estrutura musical, o fado, o lirismo, os sentimentos — sem ser sentimentalista —, as piadas, a psicologia do Povo Português (Lisboa como síntese da Alma Nacional) apresentada com naturalidade e com subtil — quase invisível — profundidade.
Tão simples… e tão difícil de fazer de novo!

2 comentários:

  1. Uma magnífica e apurada crítica sobre a feitura deste filme.
    Há um vídeo que alguém colocou sobre o filme Camões (e que não encontro) logo após o seu excelente escrito e que, por coincidência e antes de ter tomado conhecimento daquele, ia respeitosamente pedir-lhe que, quando e se lhe for possível tendo em conta os seus conhecimentos profundos sobre cinema, escrevesse uma crítica abalizada destoutro filme que me é particularmente caro.
    Uma vez por outra a minha mãe, cinéfila inveterada, falava-me deste filme mais do que de qualquer outro - embora nenhum lhe escapasse nem à minha avó que também adorava cinema - pelo facto de quase nele ter participado.
    Isto só não aconteceu porque o meu avô, seu pai, embora tivesse relações de amizade com dois ou três realizadores da altura, mas sendo uma pessoa extremamente rígida na educação dos filhos e muito autoritária, nunca por nunca ser iria autorizar a sua jovem filha a participar em 'brincadeiras' dessa natureza por muito amigo que fosse do realizador.

    Jovens bonitas houve que entraram como figurantes. Eram quase todas meninas-família as que entravam nos filmes d'então, como, só para dar dois exemplos, a famosa Tatão e mais raramente actores como o bonito e educadíssimo Vergílio Teixeira. Esta era a normalidade dado que havia poucas actrizes e menos ainda bonitas, elegantes, fotogénicas e com classe, requesitos necessários para participar em filmes que se queriam grandiosos e perfeitos em todos os aspectos.
    Como menciona, todos os colaboradores principais eram indivíduos de altíssima craveira profissional e muitos deles pertencentes a uma classe social alta ou média-alta. E era no seu meio social que òbviamente eles iam 'recrutar' por assim dizer as/os protagonistas dos seus filmes, salvo algumas excepções.

    Sobre a cinematografia dos anos 30/40, concordo ponto por ponto com o que escreveu. Efectivamente quase todos são inesquecíveis. Até a juventude (feminina) nascida muitas décadas depois se delicia a vê-los e a revê-los, rindo-se perdidamente com as piadas e as partes-gagas que naquelas comédias se sucedem a um ritmo alucinante! Como é o caso da minha filha e suas amigas.

    Afinal até eu, enquanto jovem, relativamente a alguns filmes e artistas americanos dos quais a minha mãe dizia maravilhas, franzia o nariz e murmurava: ummmm... Até que cresci e os gostos se alteraram por completo. Hoje aprecio imenso muitos desses filmes e espanto-me com as magníficas realizações e fabulosas interpretações (já estou como Barbara Stanwick, referindo-se-lhes, quando um dia lhe perguntaram o que é que tornava os seus filmes tão excepcionais: "Ah! those marvelous writers..."). É isso.

    Aproveito para contar um pormenor curioso passado com o filme Camões.
    Como disse, a minha mãe não participou neste filme por um triz..., porém nele sim participou uma sua amiga. Era uma jovem lindíssima, elegante, loura e de olhos azuis, que só não lhe coube uma pequena parte no guião, porque, segundo minha mãe contava "ela não conseguia decorar uma única frase, por pequena que fosse"!
    Esta amiga de família que participou como figurante, é uma daquelas várias raparigas, de todas a mais bonita sem receio d'errar, que rodeiam o jovem Camões numa espécie de tertúlia ao ar livre, onde algumas trocam umas breves palavras com o próprio.

    Eis as minhas ténues mas agradáveis recordações de um filme e de uma época que não vivi mas que foi indubitàvelmente a época de ouro do cinema português.

    E é assim que por culpa de um avô intransigente e educado à moda antiga, hoje não me é permitido recordar a minha mãe através do grande écran na plenitude da sua juventude e beleza. Oh, well... (como diria uma amiga minha inglesa ante factos consumados).
    Maria

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  2. Bem-haja pelo seu interessante comentário, Maria.

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