Que a crise tem patamares é visível também no tipo de comércio que prevalece. A primeira fase dela consistiu na regressão das boas lojas de vestuário, acessórios e mobiliário, em proveito e benefício das agências bancárias e cabeleireiros: era a altura em que o consumo se canalizava para o efémero e deixava de assentar em disponibilidades imediatas, para recorrer ao crédito. O segundo estádio veio com a degradação dos alvos das compras e traduziu-se no boom das lojecas chinesas de qualidade falhas. Finalmente, o afundamento total surge com a proliferação vigente das casas de compra de ouro usado, tanto na modalidade de reconversão de ourivesarias, como na de criação ex-novum.
A alta aurífera será pretexto para investimento dos particulares, mas não é disso que aqui se trata, o vil metal demandado por esses estabelecimentos raramente assentará em lingotes ou moedas que hajam sido adquiridos como aplicação estudada. O que abunda é uma quantidade enorme de pessoas com anos e dificuldades em proporções concorrentes, dispostas a sacrificar presentes queridos para sobreviver à agressão de um Presente torcinário.
É o drama que se vivia outrora no recurso às casas de penhor e aos leilões de bens trocados em emergência por tostões para o sustento. Tanto mais grave quanto, ao arrancar a segunda pele que era formada pelas lembranças dos afectos e dos triunfos do coração, se aniquilava impiedosamente a parcela de Único que garante uns pós de auto-estima às vítimas do confisco da sorte a quem só restava(m) memória(s) para a manutenção de algum interesse em continuar a viver.
Para ilustrar a comoção tipicamente feminina de semelhante tensão, ensinando-nos a sensibilidade possível ao testemunho dos objectos, em «Drouot», uma vez mais Barbara, para tempos bárbaros.
Sucinto, esplendoroso texto...
ResponderEliminarNá, Querida Margarida, a Barbara e sua letra é que provocam, por osmose, essa impressão.
ResponderEliminarBeijinho
Nunca tinha pensado no assunto por este ponto de vista, Paulo. Mas é, realmente, o que está a acontecer. O comércio razoável já só sobrevive numa política de saldo eterno. Em compensação, os cabeleireiros abrem sucursais por todo o lado. E também me pareceu, há dias, ver reabertas umas lojinhas que supunha de «câmbios», mas que, num quadro de moeda única, cabiam certamente outros valores.
ResponderEliminarE passando da causa à consequência, Querida Luísa, poderíamos dizer que é um agravamento do que há muito se constatou, a degradação da alfaiataria e modistas para o nível do pronto a vestir.
ResponderEliminarA canção da Barbara, que tenho por fortíssima nos longos anos que me acompanha, dá uma medida de reacção completamente diferente da habitual entre nós, pouco tocados que somos pela assunção da dor - a do António Silva de «O Costa do Castelo», dizendo ter guardado a fotografia do seu antigo romance, a Baronesa, com todas as cautelas... de penhor.
Beijinho