Do romance histórico enquanto manual de conduta

Releio O Hussardo, de Arturo Pérez-Reverte. Este seu primeiro livro, de 1983, editado em Portugal a partir da revisão do autor feita em 2004, é um romance histórico, passado em 1808, na invasão napoleónica de Espanha.
O fio-condutor da narrativa é assegurado por dois jovens hussardos (oficiais da cavalaria ligeira francesa), que acamaradam a partir de sólidas afinidades de carácter e gosto, sendo provenientes, no entanto, de classes distintas. Os relatos intimistas, com deliciosos detalhes realistas, revelam uma fina sensibilidade para construir personagens e ambientes autênticos; por outro lado, as descrições das batalhas e de toda a militaria prendem pela sua escala grandiosa e revelam um profundo conhecimento de História Militar; e, a Andaluzia está pintada de tal maneira — telúrica e sensual — que sentimos o seu Sol queimar e a sua luz cegar. Os tradicionais valores de qualquer cavalheiro estão aqui bem esplanados: coragem, cultura, honra, fidelidade, heroísmo, hierarquia, camaradagem, sobriedade. Note-se bem que a acção decorre na sequência de todos os males erradiados a partir de França. Os nossos heróis remam, portanto, contra a maré dos novos tempos.
Perante uma obra assim, agradeço à Literatura por ser uma Arte que permite a pausa, a aceleração, o retardamento... — ou seja: possibilita ao leitor comandar o tempo e o ritmo de fruição da obra, para melhor a poder saborear. Aqui, não há ditadura do olhar, como, por exemplo, no Cinema. Posso parar para pensar, e reler, e acelerar à procura do desfecho de uma cena, ou abrandar numa passagem cativante.
Mas, afinal, o que é que esta obra tem?... Faz-nos interrogar sobre o que andamos nós aqui a fazer, neste século materialista. Leva-nos à nostalgia de um passado em que o espírito imperava. Sentimos saudades de um tempo em que os homens se olhavam nos olhos — enquanto amigos, adversários ou inimigos.

9 comentários:

  1. Com dedicatória para os Meus Caríssimos Amigos Jovens:
    Republico aqui e agora, a propósito de uma interessante conversa numa outra caixa-decomentários, este texto que escrevi em tempos no meu blogue pessoal.
    Abraços a Todos!

    ResponderEliminar
  2. Perante a caução que Tu e o Miguel prestam do volume, não tenho como permanecer na ignorância dele, Meu Caro João. Além de que "Hussardo" é termo muito cá de casa, pela denominação do escol de escritores franceses que me são tão caros: Blondin, Déon, Laurent, Nimier...

    Abraço

    ResponderEliminar
  3. Não li o Hussardo, João – as guerras… - mas já li uns quantos Pérez-Reverte e gostei sempre imenso. Um grande defensor desses valores da honra, do brio, da lealdade. É dele uma tirada que me encanta (escrita em «O mestre de esgrima»), que reza assim: «Eu não partilho dos argumentos de ninguém. Entre outras coisas, o princípio da igualdade, que com tanto brilho o nosso companheiro de tertúlia defende, deixa-me frio. E já que fala no assunto, digo-lhe que prefiro ser governado por César ou por Bonaparte, que posso sempre tentar assassinar se não me agradarem, a ver decidirem-se as minhas preferências, costumes e companhias pelo voto do tendeiro da esquina… O drama do nosso século, don Marcelino, é a falta de génio; que só é comparável à falta de coragem e à falta de bom gosto. Isso deve-se, com certeza, à irrefreável ascensão dos tendeiros de todas as esquinas da Europa». ;-D

    ResponderEliminar
  4. Bem lembrada, essa grande tirada, toda ela elogio do escol, tal qual o tento cultivar (por exemplo, aqui na companhia dos Jovens), Querida confrade blogosférica Luísa.
    Beijo.

    ResponderEliminar
  5. Ah, então, aproveitando a Tua deixa, abuso e peço-te que escrevas aqui na nossa Casa Comum algo sobre esses franceses malditos,que também habitam o meu imaginário literário, Caro confrade tertuliante Paulo.
    Abraço.

    ResponderEliminar
  6. Já conhecia este texto do Eternas Saudades do Futuro, mas fizeste muito bem em recuperá-lo, João, já que as circunstâncias o exigiam.

    Quanto ao excerto que a Luísa publicou, andava à procura dessas frases em «O Mestre de Esgrima», sem as encontrar. É um romance muito bom que, apesar de não estar para mim ao nível de «O Pintor de Batalhas», consegue ter algumas das mais geniais tiradas escritas por Pérez-Reverte. Além disso, duvido que algum dos Jovens não se reveja em Jaime de Astarloa. Já agora, Luísa, pode indicar-me o número da página, por favor?

    ResponderEliminar
  7. A propósito, Paulo, é possível encontrar algo dos Hussardos publicado em português? É que eu já faço parte da geração anglófona, e a língua francesa tem para mim algumas barreiras intransponíveis.

    ResponderEliminar
  8. Miguel, mudei de casa há pouco tempo e os Pérez-Reverte ainda estão todos na outra (agora reconvertida em biblioteca-atelier). Mas na próxima Segunda-Feira, sem falta, volto aqui para lhe deixar o número da página, está bem? :-)

    ResponderEliminar
  9. Muito agradecido, caríssima Luísa :)

    ResponderEliminar